A pirâmide de Bird é o que você pensa que é?
Se você trabalha formalmente com a área Segurança – ou, mesmo não trabalhando, se já esteve em algum evento da área – deve se lembrar da figura: uma pirâmide, às vezes singelamente desenhada, outras com nuances 3D com todas as cores e sombras possíveis. Esta pirâmide, que a partir de 1969 (ano da I edição de “Liderança Prática em Controle de Perdas”) passaria a ser conhecida por “Pirâmide de Bird” em homenagem ao responsável pelo estudo que originou a pirâmide, Francis “Frank” Bird, falecido em 2007. A Pirâmide de Bird tornou-se um ícone dos profissionais da área de Segurança. Mas será que a mensagem de Bird foi realmente entendida?
Indo um pouco além da pirâmide.
O livro mais excêntrico da minha biblioteca tem quase o tamanho de um laptop (dos grandes) e pesa quase o mesmo. A edição que tenho aqui é de 1990, mas a publicação original é 1986 e se chama “Liderança Prática em Controle de Perdas”, de Frank Bird Jr. e George Germain (este último quase nunca lembrado e sobre quem voltarei a falar adiante).
O “Liderança Prática em Controle de Perdas” representou um marco na Segurança e marcou o início de uma filosofia de trabalho que formou várias gerações de profissionais desde então. Na realidade, Frank Bird já havia publicado outras obras com teor parecido, mas foi o “Liderança” que reuniu teoria e prática como nenhuma outra obra antes e, principalmente, foi o livro responsável por popularizar a figura da Pirâmide de Bird na forma como você provavelmente a conhece hoje.
Mas devagar agora. Se a imagem que você construiu deste livro (ainda sem tradução para o português, infelizmente) é a de “uma obra para falar da Pirâmide de Bird”, vou ter que dizer que o assunto da pirâmide ocupa uma página e meia do livro... e só. As outras 435 páginas de “Liderança” falam sobre uma diversidade de outros assuntos e, especialmente, das ferramentas de segurança e suas táticas de implantação. Esta parte do livro vale, por si só, um curso de especialização em Segurança Operacional.
Então, por que o foco na Pirâmide de Bird? Primeiro, é preciso...
Voltando rapidamente à parte I deste artigo, já citamos dois limitantes “técnicos” do resgate e emergência: a excessiva concentração de energia dos processos que operamos (especialmente nas indústrias de transformação) e os riscos inerentes ao resgate e à emergência, dada a quantidade de variáveis não controladas ou desconhecidas nestas situações e da necessidade de atuação imediata.
É hora de avaliar um limitante “não técnico” de resgates e emergências e para isso voltaremos ao caso dos bonecos escaladores dos cientistas de Yale. O objetivo do teste era saber se os bebês interpretariam as situações e, neste caso, se teriam preferência a um ou outro boneco depois de assistirem às cenas. E todos os bebês de 6 meses de idade preferiram o boneco ajudante, ao invés do atrapalhador. Como bebês nesta idade ainda não respondem a questionários, a preferência deles foi medida com um método que todos os pais conhecem: quando foram mostrados os dois bonecos (o ajudante e o atrapalhador) aos bebês após o teste, eles tentaram alcançar o boneco ajudante. Este modo de demonstrar nossa preferência através do toque, aliás, parece nos acompanhar pelo resto da vida – pergunte a um vendedor como ele consegue descobrir do que você gostou na loja sem quem você diga uma única palavra.
O que este estudo mostra é que nós humanos reconhecemos e apreciamos a colaboração desde muito cedo – nós nascemos assim. De fato, a habilidade de colaborar deve ter sido uma característica chave para a nossa sobrevivência numa época em que o stress vinha de um leão com fome e fazia toda a diferença do mundo contar com a ajuda dos outros. Por isso, esse comportamento foi geneticamente selecionado para ser transmitido ao longo de muitos milhares de anos de evolução da espécie. Há pesquisas que demonstram que nosso cérebro possui estruturas responsáveis por nos recompensar quando somos colaborativos e alguns parentes primatas nossos têm esta mesma característica, indício de que este é um comportamento realmente muito antigo.
Será que este comportamento colaborativo, aparentemente tão útil, pode significar um problema para quem faz Gestão de Riscos? Uma pesquisa do NIOSH (Instituto Nacional de Segurança e Saúde Ocupacional, na sigla em inglês) analisou 20.000 acidentes de trabalho nos Estados Unidos na década de 1970, dos quais 276 envolveram espaços confinados. Para a surpresa de muitos, nada menos que 60% das fatalidades registradas eram de pessoas tentando realizar o resgate.
Estes 60% significam que, para cada 4 mortes de pessoas diretamente envolvidas na execução de um trabalho em espaço confinado, outras 6 perderam suas vidas tentando o resgate – isso inclui resgatistas oficiais e pessoas que nada tinham a ver com o trabalho. Em outras palavras, as estatísticas mostram que mais pessoas perdem suas vidas tentando resgatar outros em espaços confinados do que propriamente por estar trabalhando lá.
No Brasil, mesmo sem estatísticas confiáveis, bastam alguns anos de observação para se concluir que a situação é parecida ou ainda pior. É constrangedor admitir que, pelo menos para espaços confinados, a chance de sucesso não apenas é baixa, como também corre-se o sério risco de piorar a situação. Você deve conhecer histórias de tentativas de resgate que ceifaram uma vida após a outra, com pessoas se enfiando desprotegidas em espaços confinados na tentativa desesperada de salvar alguém que mal conheciam... e por lá ficaram. O drama segue até que alguém mais consciente da situação decida parar e aguardar socorro especializado. Boa parte dos que se arriscaram neste caso agiram com nosso ancestral senso de colaboração, combinado ou não com outras motivações.
O terceiro limitante é, portanto, o que chamo aqui de “Risco da Ação por Instinto”, este impulso pré-histórico que nos impele à ajuda mútua mas que, no ambiente típico de um resgate (energias elevadas + variáveis imprevisíveis) pode ter um saldo negativo. Combinados, os três limitantes podem levar a verdadeiras tragédias. Daí a importância de avaliar criteriosamente cada cenário como único para a definição da qualidade das medidas preventivas versus reativas nos trabalhos perigosos. A avaliação deve passar por fatores comportamentais sutis, como este de que tratamos aqui.
Apesar da minha defesa pelas medidas proativas – especialmente o planejamento da tarefa e a preparação criteriosa do ambiente –, é preciso esclarecer que este não é um manifesto contra os resgates. A Resposta à Emergência é um elemento-chave da Gestão de Riscos e há inúmeros casos de resgates bem-sucedidos, sem os quais muitas vidas teriam se perdido. Estes dois artigos não pretendem indicar ou contraindicar o resgate, mas mostrar limitações importantes e que precisam ser levadas em conta numa abordagem mais ampla do assunto, especialmente quando a discussão está no nível tático-estratégico.
Um exemplo da complexidade que o tema pode assumir está, por exemplo, na Gestão de Riscos quando temos operações em locais remotos – caso dos silos e instalações industriais que operam “no meio do nada” – e que precisam de uma visão diferenciada dos dispositivos de resposta à emergência para suprir a falta de recursos locais. Nestes casos, os recursos de resgate e suporte básico à vida têm importância absolutamente decisiva enquanto a assistência médica especializada não chega. Num caso assim, não é que a parcela proativa perca importância – ela continua forte e prioritária, mas a parcela reativa da gestão deve ganhar um reforço.
A missão de ponderar a importância das parcelas proativa e reativa do modelo de Gestão de Riscos é delicada e dinâmica, exige experiência, precisa se apoiar em fatos, depende de visão multidisciplinar – ou seja, envolve várias áreas do conhecimento – e vai muito além do texto deste artigo. Mas alguém tem que fazer.
É isso por hoje, pessoal. Muito obrigado pelo seu tempo, até mês que vem.